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Foto do escritorErika Bismarchi

“Eu não virei uma mulher. Eu nasci uma mulher”

Quando, em reunião de pauta da etc, decidimos escrever sobre o Dia Nacional da Visibilidade Trans, logo veio um texto na mente. Até rascunhei ele. Depois de ler, conversar, escutar, decidi que o início seria mudado e que, assim, ele seria de outra forma. Pouco tempo depois – apenas o necessário para abrir o notebook -, mudei novamente, e quando comecei escrever de novo, veio de forma completamente diferente do que havia imaginado lá atrás. Escrevo tudo isso para mostrar para você, que está me lendo, como para mim, falar sobre transsexualidade, é um assunto caro.


Diante disso, preciso dizer que sou uma mulher branca cisgênera que conviveu e convive com todas as questões patriarcais que englobam a nossa sociedade. Digo isso, pois, se alguma mulher trans e/ou algum homem trans não se sentirem representados nesse texto, peço as mais sinceras desculpas. Como já mencionado, além de ser um tema valioso diante do qual me coloco em um lugar de extremo respeito por acompanhar a luta, enalteço e aplaudo de pé cada conquista desta comunidade. 


Assim, eu poderia ter começado esse texto citando diferentes dados violentos, aterrorizantes e aterrorizadores, afinal, faz 14 anos que o Brasil ocupa o topo dos países que mais mata pessoas trans e travestis do mundo, segundo o "Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras",  feito pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), mas, não. Não quero alimentar o esse universo de dor, de descriminação, mas sim, quero mostrar grandes exemplos de mulheres de sucesso. Mulheres que chegaram em seus objetivos. Mulheres fortes, que acordam dia após dia, mesmo correndo o risco de serem mortas, para lutar por suas conquistas, por seu lugar.


Dentre tantas mulheres transexuais que conheci ao longo da minha vida, Gabriella Masson, que tem 22 anos, é pedagoga e professora contratada pela Prefeitura de Mirassol, me disse uma frase que me fez refletir por dias. Ela me disse assim: “As pessoas falam mais da questão do que eu mesma. Eu apenas sou. Eu sou eu”. Ser é a missão mais essencial da nossa existência. Querer, e o mais importante, poder ser, é um direito. Direito que deve ser respeitado por todos. Devia ser o básico. O inegociável. Mas não é. 



Como a maioria das mulheres trans, Gabriella nasceu em uma família trivial: mãe, pai, outras e outros irmãos, onde aprendeu desde cedo que “homem nascia homem e que mulher nascia mulher. E que existem mulheres que gostam de mulheres e mulheres que gostam de homens, e que existiam também homens que gostam de mulheres e homens que gostam de homem.” É triste assumir, mas a sociedade nos estrutura e nos ensina assim desde que somos bebês. A ideia do azul e do carrinho para menino, do rosa e da boneca para menina são reais e transmitidos de geração a geração. Mesmo não gostando de roupas largas e não se enxergando no espelho, ela não sabia o que era transsexual, muito menos que poderia ser uma mulher transsexual. Ela apenas sentia e se identificava por coisas femininas. “Via minhas amigas de vestido longo, de pedraria, tule, renda, com aquelas fendas maravilhosas e pensava: Porque não estou assim?”


Se reconhecer como uma mulher trans, para Gabriella, foi como descobrir um universo inteiro de “tantas outras pessoas iguais”, que até então não estavam sendo vistas por ela. Após uma aula de sociologia, no primeiro colegial, a professora discorria sobre diversidade, e foi assim que ela começou a pesquisar sobre a comunidade LGBTQIAPN + por conta própria. “Quando cheguei na letra T, reparei que era ali que me encaixava”, diz. Na época, a TV Globo exibia a novela Força do Querer, em horário nobre, e a trama abordava a transição de um homem trans e todas as diversidades das questões familiares, da intolerância, dos limites éticos e morais, etc, que ele enfrentava. Como na maioria das casas brasileiras, a novela das 9, como é conhecida, é sagrada, e, na casa de Gabriella não era diferente. Dessa forma, a família dela acompanhava a transição do personagem Ivan, e, automaticamente, “a minha também”, ela conta. 


Neste contexto, explicando para a mãe as diferenças e nuances de cada grupo que era retratado na sigla, ela foi questionada em qual que ela se enxergava. Foi quando Gabriella explicou aos seus pais que ela era uma mulher transexual: “Biologicamente, nasci com um órgão masculino, mas sou mulher. Eu me olho no espelho e vejo uma mulher. De tal forma que eu não virei uma mulher. Eu nasci uma mulher”. Ela lembra que o pai, ao contrário da mãe, foi mais reativo, mas que com o passar dos tempos, conforme ela foi se impondo, a relação deles foi melhorando. 

 

Quando ela assumiu quem era, quando ela deixou de se importar com que os outros iam pensar, deixou os cabelos crescerem, pintava as unhas, se maquiava, usava salto, e assim entrou na faculdade de pedagogia. Gabriella foi a primeira mulher trans de Mirassol a cursar uma universidade particular com bolsa 100% do governo, o ProUni, e foi no seu primeiro estágio que ela sentiu a transfobia na pele: Além de ser proibida de usar o banheiro feminino, eles a chamavam não só pelo pronome errado, mas também por seu nome masculino. “Até as crianças ficavam sem entender. Uma vez, me perguntaram: ‘Professora, por que a fulana te chamou de professor?’ As crianças são puras”. Ela diz acreditar muito no poder da educação, “por isso parti para esse rumo, para essa área, para quebrar esse estigma e paradigmas impostos culturalmente”. Cabia processo no caso, já que a transfobia é considerada crime no Brasil desde 2019, mas ela deixou para lá. Preferiu mostrar que era capaz e que “teriam que me engolir até o último fio de cabelo”.


“Precisamos acabar com o preconceito”, ela diz, reconhecendo que com “os mais velhos é mais difícil da gente moldar, mas temos que trabalhar com a geração que será o futuro. Só assim mudaremos essa realidade. A criança é o ser mais puro que existe,” ela repete. Com mais espaço, reconhecendo que há evolução, mesmo que a passos de tartaruga, o acesso a Políticas Públicas deveriam ser mais efetivas.


A começar pela mudança do nome social, que é um direito de todas as pessoas, reconhecido por lei desde a Nova Constituição de 1988, e reiterado em 2016, por meio de um Decreto Federal, “que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”. Mesmo sendo um direito registrado e reconhecido, o serviço é pago e há uma burocracia. O valor para quem consegue a nova certidão “é histórico… de chorar de alegria! É saber que não há mais um vínculo nenhum com o outro nome. A troca do nome é o fim do constrangimento, de ter que sempre estar com a explicação na ponta da língua” afirma Gabriella, que também fez história na região quanto ao nome social, sendo a 2ª mulher trans de Mirassol a mudar todos os nomes de seus documentos em cartório. 


Outra questão muito séria que precisa ser abordada é a questão da Saúde. Para se ter noção, quem não tem acesso a convênio ou a tratamento particular, enfrenta muitas dificuldades de acesso à hormonioterapia. Nas cidades da região de Mirassol, e na maioria dos municípios do interior de São Paulo, não há a prestação desse serviço, sendo necessário entrar judicialmente para conseguir a terapia hormonal na capital. Mas a fila de espera é de cerca de 10 anos. Conseguir cirurgias de redesignação sexual e a feminização corporal são fatores que dependem de laudos de profissionais da saúde mental, que não tem disponível em todas as cidades, além dos encaminhamentos burocráticos e demorados. Imagine a angústia da espera de quem não tem como pagar por esses serviços? 


É assim que decidimos comemorar o Dia Nacional da Visibilidade Transexual, como um dia de exaltar pessoas que fazem a diferença, que modificam a sociedade, que conscientizam e ajudam a criar novos olhares. 


Dessa forma, não posso deixar de me render às homenagens: à professora e pedagoga Gabriella Masson, que foi tão generosa em compartilhar a sua vida e experiências comigo de uma forma tão bonita, delicada e sábia de falar; à professora de filosofia e palestrante, Luiza Coppieters; à grande Renata Carvalho, que é atriz, dramaturga e diretora teatral, que ganhou projeção nacional no monólogo “O Evangelho Segundo Jesus, a Rainha do Céu”, e hoje roda Brasil e mundo inteiro com a sua peça “Manifesto Transpofágico”. Ela também foi premiada como melhor atriz coadjuvante pelo Prêmio Guarani de Cinema Brasilerio, com o filme “Os Primeiros Soldados”; à maravilhosa cantora, que já foi citada por Elza Soares, Maria Sil, ela que acabou de lançar um álbum magnífico e é minha grande amiga; à querida doutora Amara Moira, que além de professora é escritora dos fantásticos e necessários livros: “Se eu fosse puta”, “Se eu fosse pura”, “Vidas Trans - a coragem de existir e a luta de transgêneros brasileiros em busca do seu espaço social” e “Partes de uma casa”; Erika Hilton, a mais votada vereadora, em 2020, na cidade de São Paulo, entre tantas outras mulheres. Entre tantos outros homens. Entre tantos outros nomes. 


“Nós, mulheres transexuais, não queremos o lugar de ninguém. Nós queremos o nosso lugar. Não queremos nem o primeiro e nem o último. O que eu quero é o meu lugar. O lugar que lutei para conquistar”, fala Gabriella. “Quero entrar e sair de cabeça erguida de todos os lugares. Quero olhar nos olhos. Olhar para a frente”. Reconhecendo que nem todas as pessoas trans desse Brasil tiveram a mesma sorte do que ela, que não tiveram um suporte familiar, de amigos, e que não tiveram as mesmas oportunidades, ela diz “que quer abrir caminho para àquelas que, infelizmente, não alcançaram, por ter uma luta mais complexa, mais difícil, mas que também sonham em alcançar um bom lugar, um bom trabalho, um lugar de um tratamento digno”. 


Por fim, encerro esse post com uma homenagem feita por Will às três mulheres negras, sendo duas delas trans, que foram agredidas por seguranças em uma casa de show na Lapa, no Rio de Janeiro. 


Entre a faca que o mundo coloca em minha garganta  

e as palavras que corta, ao subirem do peito até a boca

Tento fugir, tento viver, mas me perseguem, 

sentem o cheiro de nosso sangue

Corpo feito de sonhos remendados, 

todo pesadelo se pauta


Quero esquecer o que sou, 

não por ódio de mim, mas para ser muito mais 

Mas continuam lembrando, continuam matando, 

não suportam nossa liberdade 

Meu ir e vir, ameaçado, sempre que apareço com alguém que amo

Eu não quero ser pedra, não quero ser barro, 

eu empurro esse deus, 

eu quero ser pássaro


Dedico esse texto ao meu amigo Bernardo Figueira, homem trans, que não aguentou as pressões, as contradições e as maldades deste mundo, às vezes tão hipócrita e intolerante, e abreviou a sua vida, entrando para a estatística da baixa estimativa de vida da população trans.


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